AMRIGS divulga Carta de Porto Alegre em defesa da continuidade dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
Documento reúne entidades médicas e científicas em alerta sobre os impactos do fechamento das unidades e propõe debate técnico sobre saúde mental e segurança pública
A Associação Médica do Rio Grande do Sul (AMRIGS) torna pública a Carta de Porto Alegre sobre o fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, um manifesto elaborado e proposto pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS) e subscrito por diversas instituições médicas e acadêmicas do país. O documento expressa preocupação com os efeitos da desativação dessas unidades especializadas e defende a necessidade de um amplo debate técnico, ético e social sobre o cuidado de pessoas com transtornos mentais que cumprem medidas de segurança.
Além da AMRIGS, a carta conta ainda com a assinatura digital das seguintes entidades: Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (CREMERS), Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS), Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Departamento de Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Serviço de Psiquiatria do Hospital São Lucas, Centro de Estudos Luís Guedes (CELG), Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, Fundação Universitária Mário Martins e Centro de Estudos Mário Martins (FUMM), Associação de Psiquiatria Cyro Martins, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA) e Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).
As entidades signatárias ressaltam a importância de manter estruturas adequadas e equipes multiprofissionais para o tratamento ético, humanizado e seguro de pessoas com graves transtornos mentais em conflito com a lei. O documento alerta que, sem políticas públicas consistentes e recursos adequados, há risco de transferência indevida dessa população para o sistema prisional comum, comprometendo a assistência e o controle da saúde mental.
Confira o teor da carta na íntegra:
CARTA DE PORTO ALEGRE SOBRE O FECHAMENTO DOS HOSPITAIS DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO
Elaborada no âmbito do “XVII Congresso Gaúcho de Psiquiatria”, realizado em Porto Alegre, de 4 a 6 de setembro de 2025 a partir de discussões de um grupo de psiquiatras forenses, com a adesão de psiquiatras, entidades científicas e profissionais apoiadoras.
Nós, palestrantes, debatedores e participantes das atividades da área de atuação de Psiquiatria Forense do XVII Congresso Gaúcho de Psiquiatria, promovido pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS), vimos a público manifestar preocupação científica, legal, ética e social diante da perspectiva de fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) no Brasil, antes denominados Manicômios Judiciários, especialmente do Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso (IPF).
Assim que a Resolução 487/2023 do CNJ foi publicada, diversas entidades médicas e da sociedade em geral, incluindo alguns membros dos poderes judiciário e legislativo, manifestaram preocupação com as possíveis consequências no que se refere à desassistência psiquiátrica, tanto dos doentes mentais em conflito com a lei, como da população em geral. Além disso, ao conflitar com alguns dispositivos legais, a resolução compromete a qualidade das avaliações periciais psiquiátricas. Situações recentes como o caso do “bolo envenenado de Torres” e o da “mala da rodoviária de Porto Alegre” deveriam ter sido devidamente avaliadas por psiquiatras forenses. A omissão nesse processo impõe à sociedade um dano previsível e evitável.
Importante ressaltar que psiquiatras forenses e entidades médicas ou psiquiátricas não constam no escopo de profissionais que auxiliaram o judiciário na elaboração desta resolução. Em outras palavras, a Psiquiatria Forense não foi consultada. A resolução, portanto, não possui respaldo Médico-Legal.
Embora o Código Penal preveja Medidas de Segurança para inimputáveis, na prática, os HCTPs vêm sendo progressivamente criticados e desativados, sem que tenham surgido alternativas viáveis ao atendimento dessa população tão específica. Os serviços de saúde mental, já sobrecarregados, não darão conta dessa nova demanda. O IPF, como hospital de custódia, apesar de limitações impostas por negligência institucional, cumpria seu papel legal e assistencial.
O IPF, na iminência de completar 100 anos, está prestes a ser destruído completamente sem que tenha sido construído um modelo substitutivo adequado, e com isso deixa de desempenhar o seu papel institucional, qual seja:
Assistencial – Atendimento psiquiátrico e multiprofissional aos inimputáveis e semi-inimputáveis em cumprimento de medida de segurança de internação. No presente momento há aproximadamente 40 pacientes internados, sendo que desde 08/06/2023 está interditado para novas internações;
Avaliações Periciais – Responsabilidade Penal, Dependência Toxicológica, Transformação de Pena em Medida de Segurança, Verificação de Cessação de Periculosidade.
A ausência de um corpo de peritos psiquiatras do Estado compromete o fluxo de realização de perícias, bem como a sua qualidade. O perito é um especialista que desempenha uma importante função de subsidiar laudos ao judiciário nas esferas cível, criminal, administrativa, previdenciária, além de fornecer importantes contribuições no estudo da ética e da violência.
Na área criminal, cada vez mais se constata a necessidade da avaliação pericial em crimes cometidos com extrema crueldade que assolam a sociedade, necessitando uma resposta técnica ao judiciário quanto à imputabilidade penal;
Pronto-Socorro Psiquiátrico do Sistema Prisional – Superveniência de Doença Mental.
Com a interdição do IPF, a população carcerária deixou de contar com este substancial espaço de avaliação e internação psiquiátrica. Em dezembro de 2023 foi criado o Centro de Custódia Hospitalar (localizado no Hospital Vila Nova, com 15 leitos) para atendimento e internação breve de pessoas privadas de liberdade que necessitam hospitalização psiquiátrica. A manutenção das pessoas com transtornos mentais graves no sistema prisional ocasiona risco acentuado de violações de direitos;
Ensino e Pesquisa – Residência Médica em Psiquiatria Forense.
O Rio Grande do Sul é um estado reconhecido como formador de psiquiatras forenses que recebe candidatos de outros estados da federação. A formação de um psiquiatra forense requer seis anos de graduação em Medicina, três anos de Residência Médica em Psiquiatria e mais um ano de Residência em Psiquiatria Forense, sendo, portanto, bastante especializada.
A Resolução 487 parte do pressuposto da absolvição imprópria e não leva em conta questões relacionadas à gravidade dos crimes, nem à gravidade da doença mental dos inimputáveis e tampouco à sua complexidade com comorbidades relacionadas a transtornos aditivos, déficits cognitivos e transtornos de personalidade, por exemplo. A sua implementação leva em conta encaminhamentos para dispositivos como Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e Serviço de Residência Terapêutica (SRT) que, além de não terem sido concebidos para esta finalidade, são inexistentes e/ou em número insuficiente na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) na maioria das comunidades. Ao remeter genericamente à RAPS, essa resolução ignora que o desenho atual da rede não possui a complexidade necessária para o manejo desses quadros. Assim, há um vácuo assistencial e jurídico, pois nem a prisão comum nem a rede de saúde mental estão preparadas para receber e tratar esses casos.
A ausência de dispositivos especializados como os HCTPs coloca em risco os direitos dos pacientes psiquiátricos em conflito com a lei. Ao ingressarem no sistema prisional, eles podem eventualmente ter acesso à internação em unidade psiquiátrica prisional, mas posteriormente retornam ao estabelecimento prisional comum — que não possui condições adequadas no manejo de portadores de transtornos psiquiátricos graves. A segurança pública é colocada em risco, já que ao serem colocados em liberdade não receberam a contenção e o tratamento necessários.
